CADERNO IPATINGA 2024

21 de janeiro, de 2023 | 15:00

Opinião: Fome e produção de alimentos

Maria Sylvia Macchione Saes * Sílvia Helena Galvão de Miranda **

Nos últimos 20 anos, a produção de alimentos no Brasil cresceu para as mais variadas culturas e criações animais. Este processo se deu tanto nas regiões marcadamente conhecidas como fronteiras do chamado “agronegócio”, quanto nas regiões caracterizadas pela agricultura familiar (1). De acordo com o último Censo Agropecuário, a oferta de alimentos tem tido a participação dos dois perfis de produção.

A evolução da produção de alimentos nos últimos cinco anos evidencia que o fenômeno do crescimento da fome no Brasil não parece estar relacionado primordialmente à questão da oferta de alimentos – ao menos quando se fala da fome nas zonas urbanas, que atinge 42,2% da população. Nos anos em que há o agravamento da fome, a produção dos principais alimentos se manteve estável ou cresceu, à exceção da mandioca e batata (tabela 2). Além disso, observa-se que a oferta primária de alimentos avançou mesmo em regiões onde o porcentual da fome é mais elevado. De acordo com dados da Conab, desde a safra 1999/2000 até a 2021/2022, a produtividade média na produção de grãos aumentou 208% na região Nordeste, enquanto no geral, para o Brasil, 66%.

Convertendo-se os dados em produtividade dada em kg/per capita/ano, nota-se que para grãos, o indicador cresce entre 2010 e 2021, enquanto para alguns produtos alimentícios de consumo interno (arroz, feijão, trigo, banana e batata-inglesa), está relativamente estável.

No entanto, o relatório da Rede Penssan de 2022 é alarmante: apenas quatro em cada 10 domicílios brasileiros são capazes de ter acesso integral à alimentação. O restante desses domicílios se encontra em situação de insegurança alimentar, em algum grau, seja leve (incerteza se vai conseguir alimentos no futuro), moderado (alimentação insuficiente ou de má qualidade) ou grave (passam fome). São 125,2 milhões de brasileiros, o que representa um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018. De forma inesperada, este quadro é ainda mais grave nas áreas rurais, com 18,6% das famílias que vivem no campo em insegurança alimentar grave, proporção acima da média nacional.

“O relatório da Rede Penssan de 2022 é alarmante:
apenas quatro em cada 10 domicílios brasileiros
são capazes de ter acesso integral à alimentação”


Tais evidências contradizem os argumentos históricos de que a fome tem como principal motor a oferta – condições climáticas adversas, guerras e escalada de conflitos locais. Embora não se possa desprezar tais fatores, o aumento da produtividade agrícola no Brasil, decorrente das inovações tecnológicas, e o desenvolvimento de formas mais eficientes de comercialização deslocaram a importância dessas limitações de oferta para as limitações na demanda (falta de renda, por exemplo) como principais determinantes da fome.

Este cenário nos faz olhar para a etapa seguinte no sistema alimentar, que é a da distribuição: os alimentos produzidos chegam a toda a população? Quais os entraves para que alcancem a mesa de todas as pessoas?

O problema na distribuição do alimento por classes de renda é complexo, e reflete o aumento do desemprego e a queda no poder de compra dos salários decorrente inclusive da pressão de alta nos preços dos alimentos, dada pelo INPC Alimentos e Bebidas (Figura 2). Para ilustrar, em janeiro de 2010, um salário mínimo permitia adquirir 2,3 cestas básicas na região metropolitana de São Paulo, razão que caiu para 1,5 cesta básica em novembro de 2022.

Há, portanto, um evidente paradoxo quando se constata que os indicadores de fome caminham em direção oposta à do crescimento da produção e produtividade de alimentos. Embora no Brasil, comumente, associe-se a fome à falta de alimentos e/ou ao deslocamento da produção de alimentos para exportação de produtos agrícolas, as informações apresentadas ressaltam a importância das questões relacionadas à renda, que limitam a segurança alimentar de grande parcela da população. Cada um dos elementos aqui apresentados merece análises mais detalhadas, tendo em vista a complexidade desse fenômeno e a relevância dessas informações para a concepção e implementação de políticas adequadas e mais eficazes.

Há definição legal de Agricultura Familiar (Lei nº 11.326/2006) para fins, inclusive, de definição de políticas públicas, mas do ponto de vista de recorte tecnológico e de acesso ao mercado esta distinção não é funcional. Na verdade, os dados mostram que muitos produtos da cesta básica são produzidos pelas unidades consideradas do agronegócio, assim como pela agricultura familiar de alta tecnologia e produtividade. A maioria dos produtores familiares está inserida em canais de comercialização formais, via associações e cooperativas, que também atingem os mercados externos. No entanto, neste breve artigo, não entraremos nas designações ou categorizações quanto ao perfil do produtor, olhando apenas para o volume e valor da produção de alimentos. Isto não significa que não há também produtores familiares com baixa tecnologia, dificuldade de acesso a recursos financeiros e, portanto, com restrições para produção mesmo para autoconsumo.

* Professora da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

** Professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Ambas as autoras integram o Grupo de Trabalho USP “Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome”. E-mail GT – [email protected]

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