25 de janeiro, de 2023 | 13:00

Opinião: Dormir, dormir... talvez sonhar

Beto Oliveira *

O janeiro branco, campanha brasileira que busca fomentar o debate sobre a saúde mental da população, não deveria deixar de refletir sobre o sono na atual configuração da nossa sociedade. Afinal, é cada vez mais comum depararmo-nos com pessoas que se queixam de dificuldades para dormir. Muitas alegam, às vezes até mesmo com certo orgulho, que suas mentes não param. O orgulho parece provir tanto da vaidade de pensar demais, trabalhar demais, ser criativo, quanto de se sentir ajustado à norma social que exige um trabalho ininterrupto.

Como enfatiza o neurocientista francês Michel Desmurget, o sono não é uma pausa, uma ausência de trabalho psíquico que visa compensar a sobrecarga da vida de vigília. De forma didática, Desmurget compara a mente com um supermercado que quando fecha precisa contabilizar o estoque, repor os produtos nas prateleiras, cuidar da limpeza do local, etc. Ou seja, quando dormimos, não apenas descansamos, mas fazemos trabalhos mentais que teríamos muita dificuldade de fazer acordados; assim como alguns trabalhos serão melhor executados se nosso hipotético supermercado estiver vazio.

Portanto, dizer que a mente não para é uma redundância. É próprio da mente estar sempre funcionando, mesmo quando estamos dormindo. Mas o que essas pessoas parecem querer dizer é que suas mentes não cessam de fazer o trabalho que deveriam fazer apenas durante o dia. E claro, isso não é um acaso ou um traço singular dessa ou daquela pessoa. É uma marca da nossa sociedade que exige o trabalho 24 horas por dia, 7 dias na semana.

“O orgulho parece provir tanto da vaidade de pensar
demais, trabalhar demais, ser criativo, quanto de se sentir
ajustado à norma social que exige um trabalho ininterrupto”


Jonathan Crary, em seu livro “24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”, denuncia exatamente tal drama contemporâneo, destacando como o mundo moderno fez com que as mecanizações, vigilâncias e padronizações do mundo industrial e de consumo invadissem nosso cotidiano. Atualmente, com os dispositivos eletrônicos que temos, principalmente os chamados aparelhos smart, vivemos ainda mais num estado de trabalho ininterrupto. A todo momento fazemos algo que pode ser registrado, anotado, gravado e processado com o objetivo de predeterminar nossas escolhas e ações futuras. Seja o trabalho propriamente dito, seja interações em aplicativos ou em redes sociais, estamos constantemente num ambiente mais ou menos institucionalizado, padronizado e de controle. Sem pausa. E isso, claro, alcança também nossa noite.

Também Deleuze, ao descrever as sociedades de controle, já havia dito que no mundo contemporâneo é cada vez mais raro o tempo aberto, não regulamentado pelo trabalho, pelo consumo, pelo lazer organizado ou pelo espetáculo. Nesse sentido, talvez já seja possível dizer que o sono, considerado por Crary a última barreira a ser expropriada pelo mundo em que vivemos, já se tornou um artigo, senão de luxo, pelo menos de escassez. Daí o autor nos lembrar do crescimento assustador do número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para consultar mensagens ou acessar seus dados.

O fato é que já dormimos menos que gerações passadas e como todo produto escasso o sono começa a ter seu preço. Cada vez mais pessoas pagam para dormir através de remédios ou tratamentos de sono. Num mundo em que o sono é tabelado, dormir genuína e gratuitamente chega a ser um ato de rebeldia. E para tal é preciso não exatamente parar de pensar (o que exige um esforço que os praticantes de meditação sabem bem), mas lutar para que tenhamos e desfrutemos de mais tempo aberto, não regulamentado. Só assim nossa mente poderá fazer o trabalho que desde Aristóteles, passando por Freud, até aos psicanalistas e neurocientistas atuais, provam de grande valor para a experiência humana: nas palavras de Hamlet, “dormir, dormir, talvez sonhar”.

* Psicólogo. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço). Autor dos livros “O dia em que conheci Sophia”, “As Cornucópias da Fortuna” e “O Chiste”

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