20 de março, de 2023 | 14:50

Crônica: Histórias de seu Tomazim...

Nena de Castro *


A tarde ia embora sem pressa, enquanto o sol recolhia seus raios. Homens voltavam do campo, enxadas e foices nos ombros, enquanto as mulheres esquentavam a janta e já adiantavam o cozimento do cará, aipim ou inhame que seriam comidos antes de dormir, com melado. A noite engoliu o que restava da claridade, as galinhas foram procurando os poleiros, o gado se ajeitava para passar a noite...Contudo, o terreiro do casarão estava numa animação só, era sexta-feira, dia de ouvir e contar Histórias.

A meninada se assentava no chão do terreiro, as mulheres se abancavam nos caixotes, bancos, troncos. Os rapazes aproveitavam a oportunidade de sentar perto das moças, havia trocas de risos e olhares, os olhos falavam pelos apaixonados e diziam de amor e desejos. Às vezes aparecia batata assada, um pé de moleque, pedaços de broa e até uma garrafa de pinga.

Zé Buião, o violeiro, tocava uma canção bonita e cantava e o povo fazia coro. E aí o velho preto Tomazim se levantava e começava a narrar seus causos e histórias que faziam a moçada se arrepiar de medo ou viajar no encantamento da palavra narrada. A voz potente e ritmada do contador envolvia a todos os moradores da redondeza:
“No tempo em que o tempo tinha mais tempo, havia em São José do Alto, um homi ruim, mas tão ruim, tão danado, que todos tinham medo dele. Era o coroné Setembrino, rico, poderoso, dono de muitas cabeças de gado, de muita terra, de muitas plantações de café... Andava sempre armado e cercado de jagunços.

O homi num tinha medo de nada, não gostava de ninguém, não tinha amor nem temor a Deus, nosso Sinhô. Tomava a terra dos outros, matava o dono e a famia, dizia qui era pra mode ninguém recramá. Muitos mortos, muitas famílias fugindo quando dava tempo, muitas donzelas desgraçadas pelo mardito. Sempre com seu chicote na mão, quando não gostava de arguma coisa que o outro dizia, jogava o chicote e laçava a pessoa, que caía no chão. Então dava uma surra, pisava com o cavalo ou deixava pros jagunço judiá! Dizia o povo que o Cão andava em sua garupa, ninguém o desafiava.

No outro lado do rio, numa tapera veia, vivia Sô Dito. Era um veio pobre, vivia só, mas tinha um coração bão, não negava a ninguém as bananas e laranjas do quintá repartindo o pouco que pissuía com quem precisava. Gostava de conversá com quem passava, dizia ditos engraçados, cheios de sabedoria. Quando ganhava algumas peças de roupa usada, afirmava que se a roupa fosse grande, ele “crescia”. Se fosse pequena, ele “encolhia”.

Adoeceu Sô Dito e ficou ruim mess. O cumpadi Jeremia ia todo dia ver o amigo, limpar a tapera, levar um mingau... Sô Dito só piorava, emagrecia mais e mais e a tosse não o largava.

Um dia ele falou: assossegue, cumpadi Jeremia, eu só vou morrer no dia e hora em que o coroné Setembrino morrer. Pois enquanto o capeta carrega ele pros inferno, os anjo me leva pro céu.

Pois então aconteceu um dia que um o coroné foi usar o chicote em um caboco, esse sacou uma garrucha que tava escondida e acertou o homi. Que caiu do cavalo, ficou com o pé preso no estribo e foi arrastado pra bem longe. Correram atrás, mas quando pararam o animal, o coroné dava seu último suspiro. Morreu o trem ruim. E na cabana, na mesma hora, Sô Dito entregou a alma ao Criador.

* Escritora e encantandora de histórias
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