08 de fevereiro, de 2022 | 14:47

Visita noturna

Nena de Castro *

No meio da noite, acordo com um assobio, longo e irritante. Daí a pouco, ruídos de pouso no telhado. Aguardo. Então, aparece um pé sujo sob minha cama, unhas enormes, traçando voltas, como quem está deitado ao sol fazendo círculos com o pé.

- Murucututu – digo - sei que é você! Pode sair de debaixo da minha cama. Você não me assusta.

-Ora! - diz a velha rolando o corpo e se colocando de pé. Nem um sustinho? Que coisa!

Olho para a anciã, que mede no máximo, 1, 40m: seu cabelo desgrenhado é curto e branco, veste um vestido rasgado e está descalça. Seu pé direito é maior que o esquerdo e o dedão, enorme. Ela, de pé, coloca o calcanhar direito no chão e fica rodando o dedão, enquanto conversa. A velha é engraçada, um misto de pássaro e gente. De dia, é uma ave cinzenta, um tipo de harpia; de noite transforma-se em gente. E aparece para algumas pessoas, para atormentá-las; no entanto, tem um carinho enorme pelas crianças e não as assusta, pelo contrário, canta para fazê-las dormir e essa é a razão pela qual a tolero. Voando aqui e ali, Murucututu sabe de tudo, e quando as coisas ficam ruins, aparece para gozar minha cara e zombar da minha fé na raça dita humana.

O que foi, velha caduca? Qual a bola da vez? Vomita logo.

- Eita, que a Bugra tá feroz, gente. – Diz rindo e exibindo os dentes feios e sujos. - E caduca é sua avó, bisa e tataravó, que conheci bem.

- E sua terra, hein? O país precisa ser lavado com sabão de soda cáustica, para tomar jeito. O preço do combustível está quase alcançando o pico do Himalaia, a fome grassa pelo país com a covid-19, o preço da carne também está pela hora da morte; agora, os políticos não tem mais espaço nas cuecas e malas pra enfiar tanto dinheiro advindo das negociatas. E nada de votarem a favor do povo, neca de reforma administrativa, menos impostos, menos dinheiro pros partidos, eita mundo velho sem porteira.

Suspirei, sabendo que vinha coisa pior. Murucututu não deixa por menos, claro.

E você sabe que tem pastor por aí dizendo ao seu rebanho que aquele que não votar no candidato que ele indica, vai pro inferno? E tem muito incauto crendo nisso, credo.

E a violência que aumenta a cada dia? O cara mata o vizinho “supondo” que é assaltante? E esse por acaso é negro? Se fosse branco será que levava tiro?

- Já sei de tudo Muruca! Vira pássaro de novo e bata as asas em retirada, seu papo é de bicho-papão, ou seja, horrível. Vaza! Sartaaa! Se escafede!

-Ah, e as 30 pauladas? Fizeram purê do pobre congolês, que bestas-feras são vocês? E ainda...

Atirei na velha um sapato. Ela se esquivou deu uma gargalhada terrível, transformou-se na ave cinzenta e voou pra longe.

- Voltarei! É sempre um prazer atormentar almas sensíveis aos problemas dos brasileiros! Teremos eleições e muitos horrores pra contar, muita sem-vergonhice.

Suspirei desalentada e me deitei de novo. E busquei no fundo d’alma uma gota de esperança. Apesar de...

* Escritora e encantadora de histórias

Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço