23 de março, de 2022 | 13:29

Doença invisível

Luara Baêta *

Aquele dia me marcou. Inicialmente não passava de um dia normal no supermercado, mas virou um amontoado de sensações que eu não tinha ideia que enfrentaria naquela tarde. Principalmente, porque estava indo comprar apenas um pacote de biscoito. Sim, um pacote. Segui em direção ao caixa, como sempre confiante, levando minha carteirinha de paciente de Neuromielite Óptica. Confesso que toda vez que passava pela fila preferencial, ela já estava lá em mãos. É como se eu já soubesse que algum dia algo poderia acontecer, mas caso acontecesse eu estaria pronta. Sabe por quê? Ora! Por fora eu era uma mulher jovem, com dois braços, duas pernas, olhos, boca e tudo extremamente funcional.

Eu sabia que não dava pra enxergar a dor insuportável e excruciante que eu sentia em meus membros. Sabia que aquela queimação horrorosa, além da sensação de peso que eu sentia ao carregar meus próprios braços e pernas, não eram vistos. Eu sabia da fadiga que atingiria meu corpo, ainda que não enfrentasse nenhuma fila. Portanto, sim, eu estava sempre pronta para mostrar a carteirinha, dizer que era uma doença invisível e ainda conscientizar alguns. Seria perfeito, hein? Quanta ingenuidade da minha parte.

“Nunca estamos prontos para uma situação
como esta, quando a falta de empatia,
percepção e excesso de julgamentos
são supervalorizados na desconstrução do outro”


Entrei à espera de minha vez. Enquanto não chegava, rotineiramente, dei uma visualizada no celular, que me tirou daquela cena por alguns segundos. Quando voltei pra realidade no supermercado, outro ambiente me aguardava. Era como se eu estivesse no escuro, sozinha, e vários pares de olhos se acendessem em minha direção querendo me devorar. Várias pessoas haviam se juntado diante e atrás de mim. Se entreolhavam e balançavam a cabeça com sinal de negação. Era como se o corpo delas falasse: “O que essa menina está fazendo nessa fila? Aqui não é o lugar dela. Que mau caráter, querendo se aproveitar de lugar de idoso. Sai daqui!”. Se expressavam em seus julgamentos sem abrir a boca. E muito menos sem me dar a chance de dizer nada, mesmo estando pronta.

Meu coração começou a acelerar, a respiração ficou ofegante e eu só queria sair de lá. Fome? Nem tinha mais. O espaço tinha sido preenchido pela angústia e o choro, que permiti dar vazão em um canto, ainda no supermercado. A carteirinha? Continuou no mesmo lugar, isto é, na mão, assim como as minhas palavras, nem chegaram a sair do lugar. Percebi que nunca estamos prontos para uma situação como esta, quando a falta de empatia, percepção e excesso de julgamentos são supervalorizados na desconstrução do outro. Essa atitude é muito pior para quem tem uma doença invisível.

Lembrando Antoine de Saint Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. Porque digo isso? A minha doença é invisível. Mas meu potencial é desconhecido para quem passa por mim com indiferença. E é ele que me faz ter garra para continuar de pé e ter esperança de um mundo capaz de enxergar além dos olhos, afinal de contas, também acredito que “só se vê bem com o coração”.

* Paciente de Neuromielite Óptica

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