26 de abril, de 2022 | 13:29

Doces lembranças

Nena de Castro *

Olho pra compoteira cor de rosa que mamãe ganhou quando se casou aos 16 anos. É um mimo conservado por meio dos tempos, com o qual tenho o maior cuidado. É pra nós, da família, sinônimo de delícias feitas caprichosamente por Dona Inês, doceira de mão cheia. Tudo era feito no tacho de cobre, areado com cinza e limão e o cheiro do cravo e canela adicionados à calda do doce de figo, ou de mamão ou laranja da terra nos enlouquecia. A memória gustativa nos faz viajar pelo tempo é só fechar os olhos e visualizar a figura materna mexendo com paciência e sapiência as misturas mágicas que nos adoçavam a vida... então me lembrei do grande médico e escritor Pedro Nava, autor de “Baú de Ossos” e outros livros memorialistas que evocam sua infância em Juiz de Fora. Cumpre ressaltar que Nava era respeitadíssimo, Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre ele: “Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o leitor com suas memórias de infância”.

Passemos, pois, às memórias gustativas de Nava, uma verdadeira judiação. “A cozinha mineira, pouco abundante nos pratos de sal, que ficam nas variações em torno do porco, do toucinho, da couve, do feijão, do fubá e da farinha - é de uma riqueza extraordinária em matéria de sobrepastos. Hoje tudo mudou e minguou. Mas lembro-me bem da mesa de minha avó materna, em Juiz de Fora, onde a Inhá Luísa, da cabeceira, podia olhar a ponta dos meninos e das compoteiras, de que havia, ao jantar, umas quatro ou cinco repletas de doce. Menos, era penúria. E que doces... Os de coco e todas as variedades, como a cocada preta e a cocada branca, a cocada ralada ou em fita, a açucarada no tacho, a seca ao sol. Baba-de-moça, quindim, pudim de coco. Compota de goiaba branca ou vermelha, como orelhas em calda. De pêssego maduro ou verde cujo caroço era como um espadarte no céu-da-boca. De abacaxi, cor de ouro; de figo, cor de musgo; de banana, cor de granada; de laranja, de cidra, de jaca, de ameixa, de marmelo, de manga, de cajá-mirim, jenipapo, turanja. De carambola, derramando estrelas nos pratos. De mamão maduro, de mamão verde - cortado em tiras ou passado na raspa. Tudo isto podia apresentar-se cristalizado - seco por fora, macio por dentro e tendo um núcleo de açúcar quase líquido. Mais. Abóbora, batata roxa, batata doce em pasta vidrada ou pasta seca. Calda grossa de jamelão, amora, framboesa, araçá, abricó, pequiá, jaboticaba.

Canjica de milho-verde tremendo como seio de moça e geleia de mocotó rebolando como bunda de negra. Mocotó batido, em espuma que se solidifica - para comer frio. Pamonha na palha - para comer quente, queimando os dedos. Melado. Tudo isto variando de casa para casa, segundo os segredos de suas donas e as invenções de suas negras - se desdobrando em outros pratos, se multiplicando em novos. Dos aristocráticos, com receitas pedindo logo de saída trinta e seis gemas, aos populares, como o cuscuz (só fubá, só açúcar, só vapor d'água e tempo certo) e como a "plasta" de São João del-Rei (só fubá, só rapadura, só amendoim e ponto exato) - que tem esse nome pelo seu aspecto de bosta de boi, do emplastro que forma no tabuleiro quando cai da colher de pau.

E a abóbora da noite de São João? Era aberta por cima, esvaziada dos fiapos e caroços, cheia de rapadura partida, novamente tampada, embrulhada em folhas de bananeira e enterrada a dois palmos de fundo, debaixo das grandes fogueiras. Aí ficava duas, três horas e quando saía dessa moqueada, tinha cheiro de cana queimada e gosto ainda mais profundo que o das castanhas. Comia-se no fim das festas de junho bebendo crambambali e cantando até cair ao pé das brasas que morriam. O crambambali é bebida sagrada - um quentão legitimamente centro de Minas. A receita? Uma travessa cheia de pinga, rodelas de limão, lascas de canela e rapadura. Toca-se fogo na cachaça e deixa-se esquentar bastante. Apagar, coar e servir em canequinhas de gomo de bambu”. Afeee, estou com a boca cheia d’água! Um bom dia, meus cinco leitores! E nada mais digo!

* Escritora e encantadora de histórias

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Comentários

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Tião Aranha

28 de abril, 2022 | 22:24

“Nossa escritora hoje deixou até diabético com água na boca. Bons tempos aqueles. Boas lembranças de Pedro Nava.”

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