30 de dezembro, de 2020 | 13:57

Espetinho de ratazana!

João Paulo Xavier *

“As desigualdades sociais, aqui, são assustadoras e a alienação das pessoas com relação a isso é perturbadora”

Impressionante como ocorre a exotificação das condições degradantes de vida em que muitas pessoas vivem hoje no Brasil. Ao acessar um site de notícias, deparei-me com a seguinte frase em uma manchete: “Lauriete come rato”. O nome não me pareceu estranho, então fiquei curioso, cliquei, li e pesquise outras informações sobre a personagem daquela notícia. Minhas suspeitas foram confirmadas. Já havia escutado aquele nome. Lauriete é uma cantora evangélica. Isso não me surpreendeu. O que não esperava era descobrir que a cantora também foi eleita Deputada Federal no ano de 2018 - na realidade esse sincretismo setecentista entre religião e estado tem se tornado, infelizmente, uma tendência forte no Brasil, neste século. A percepção disso mudou a forma como li o restante da notícia. Segundo as informações divulgadas no site e nas redes sociais digitais da parlamentar/cantora, a deputada acompanhou alguns missionários integrantes do grupo evangélico Gideões da Última Hora, da cidade de Balneário Camboriú, no litoral catarinense, para uma excursão evangelizadora até o interior do estado da Paraíba. Um processo, a meu ver, profundamente enraizado no primeiro Estado Sociológico, o primitivo ou teológico, descrito por Auguste Comte em 1798 – pensador francês fundador da sociologia.

Nesse estágio do desenvolvimento da sociedade, procura-se justificar as mazelas sociais, as misérias e os sofrimentos humanos por meio dos planos e da vontade divina; nessa missão, é oferecido um salvador e, por meio da fé, são apresentadas explicações para os fenômenos sociais. Fosse apenas um grupo evangélico do sul Brasil a realizar essa excursão, já seria colonizador e europeu o suficiente, no entanto a situação fica ainda mais grave quando a pessoa a realizar essa visita é uma parlamentar que representa, no nível federal, o interesse público.

Estive em janeiro de 2020 na Paraíba - em João Pessoa e Cabeledo – e observei ao conversar com vários paraibanos, em momentos distintos, que aquele estado enfrenta uma grave crise de abastecimento de água potável, o saneamento básico é inexistente para muitas famílias, há problemas de infraestrutura e urbanismo e, tudo isso é facilmente observável já na capital.

A comunidade visitada pela parlamentar está no interior do estado, o que me faz pensar que se aqui no Vale do Aço, a 200 quilômetros da capital, temos bairros sem esgoto canalizado, Ana Rita, por exemplo - imagine uma comunidade sertaneja na qual as pessoas têm pelejado para sobreviver. Eu não sei você, mas acredito que para a maioria das pessoas no Brasil, os ratos são um problema sério. Símbolos de sujeira, leptospirose e outras doenças.

Por isso, só posso concluir que as palavras da parlamentar “Aqui, é normal comer rato” expressam a indiferença do poder público com relação ao sofrimento e a degradação da qualidade de vida de várias famílias neste país. Além de uma profunda alienação social e sociologicamente primitiva. Não concordo que comer rato seja normal. Não concordo que sobreviver a base de farinha, fubá e água seja normal. Não penso que nenhuma dessas situações sejam normais para serem vividas por um cidadão/uma cidadã de um país que possui o 22º maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo.

As desigualdades sociais, aqui, são assustadoras e a alienação das pessoas com relação a isso é perturbadora. Normalizaram a pobreza; a miséria; a dor de mães pretas que enterram seus filhos assassinados pela polícia; o racismo expresso estrutural, estética e institucionalmente; os escândalos políticos; a ignorância de quem apoia um governo que despreza a existência do pobre e a grave crise econômica, a violência e a truculência direcionadas às periferias, aos negros e negras e pessoas em situações de vulnerabilidade social. No fim do testemunho deixado em suas redes sociais, a parlamentar afirmou que aquela fora a melhor experiência de sua vida e que foi transformadora! Deus usou aquelas famílias para falar ao seu coração. “Glória a Deus” concluiu.

Lamentável esse estado intelectual e de raciocínio acrítico. As famílias carentes seguem sem assistência do Estado, sem comida, sem conseguir sacar o auxílio emergencial, sem recursos para conseguir se alimentar e viver dignamente, ao ponto desse caso triste de terem que caçar ratos para ter o que comer.

Já publiquei, aqui, um artigo no qual abordo a quantidade de comida produzida neste país, chamado: “O Desperdício sai caro”, por isso, questiono o que será que Irmã Lauriete ouviu em seu espírito? Será que foi algo relacionado a ineficiência do Estado ou terá sido sobre todos os privilégios que a blindam, protegem e proporcionam uma qualidade de vida muito diferente do que é vivenciado pelos 10,3 milhões de brasileiros que estão passando fome, neste exato momento no Brasil, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada em 17 de setembro. Esse estudo revela que a insegurança alimentar é grave no Brasil, especialmente, nas áreas rurais 40,1% da população enfrentam a fome. Não, deputada! Comer rato não é normal e muito menos achar isso normal.

* Mestre em linguística aplicada (UFMG)e doutor em estudos de linguagens pelo CEFET-MG onde atua como professor e pesquisador. E-mail: [email protected]
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