31 de janeiro, de 2023 | 15:00

Opinião: Leitoa à pururuca...

Nena de Castro *

Sinhá Orina Firizete da Silva, reagia sempre da mesma maneira ao enfrentar um problema: limpava o assoalho da casa. A qualquer hora do dia ou da noite, pegava o balde com água, a barra de sabão, o rodo e a vassoura e começava um infindável ritual de limpeza nos cômodos da casa, até que lhe sossegasse o coração e a aflição passasse. Pó e gordura não tinham vez na cozinha e nos outros cômodos e a casa brilhava e rebrilhava sob seus cuidados. Algumas vezes, quando o problema era maior, ela se ajoelhava e esfregava o chão com a escova, num frenesi total, até dar por encerrada a tarefa. Quando o marido Antão fora embora com a sirigaita Dorovina de Jesus, ela não chorou. No entanto, lavava a casa todos os dias, de joelhos, até completar um mês. Após esse tempo, vestiu-se de luto e nunca mais mencionou o nome do marido. Quando a filha Irascilda engravidou de Zé Taquara que fugiu para a capital, resolveu pintar a casa, serviço que executou com capricho, caiando cada cômodo com cuidado e atenção. Viviam, ela, Irascilda e o neto na casa antiga que possuíam, em um terreno pequeno, herança de seus pais. Na parte de cima do terreno morava Lazinho, seu filho mais velho, casado com Dodora  e os dois filhos. Da venda do leite, das bananas e outras frutas, galinhas e porcos, sobreviviam. Sinhá Orina levava a vida no trabalho e na limpeza. Era uma mulher simples, de fala mansa e arrastada, cujo maior defeito era mesmo limpar. Nada podia ficar sujo, tudo tinha que rebrilhar sob o sol e ela mourejava do amanhecer ao anoitecer. E assim a vida seguia seu curso, sem grandes surpresas até que os moradores da pequena vila foram celebrar o cinquentenário da igreja do santo padroeiro. Preparação para a missa, procissão, quermesse, parque de diversões, leilão. E nesse quesito sinhá Orina era imbatível, com a doação de uma leitoa à pururuca assada na brasa que levava o povo à loucura! E quem mais gostava era o ex-marido Antão, que era louco pela pele crocante e sempre que ela assava a leitoa pras festas em casa, ia comendo a pele assada sem repartir com os convidados, numa aradeza sem fim.

Ao ajudar nos preparativos para a festa, o vento levou até ela a candonga: após todos aqueles anos, Antão viria ao povoado, trazendo a outra família para as festividades.

A dona da casa se esmerou no tempero. Sacrificada a leitoa na véspera, lavou-a bem raspando o pelo, furou-a por todos os lados, introduzindo o sal com alho socado cebolinha, pimenta do reino, caldo de limão, cachaça e ervas diversas. E uma especial, reservada pra pele.

Pôs a bichinha pra assar e ia regando a carne com a vinha d’alho cheirosa, receita de seus antepassados. Deu aquele trato pra pururucar a pele, fez a farofa que acompanhava a delícia, distribuiu as rodelas de cebola, envolveu tudo com folha de bananeira, tampou com uma toalha e preparou-se para levar tudo à vila. Infelizmente, pisou de mau jeito e torceu o pé. Pediu então à sua vizinha fofoqueira dona Fizinha que levasse a prenda. Sabia que essa não resistiria e diria que ela mesma é que preparara a delícia. E assim foi. Seu Antão arrematou a leitoa e começou a comer a pele. A festa continuava, animada, quando ele se sentiu mal. Levado pra casa dos parentes, não melhorou com os chás nem com os remédios do farmacêutico Totino. Levaram-no pra capital, quase morto, diarréia sem fim...  Sarando repentinamente, Sinhá Orina naquela noite esfregou o chão da casa e de vez em quando, dançava com o esfregão e cantava...

* Escritora e encantadora de históricas

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