03 de maio, de 2023 | 13:00
Opinião: ''Trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador''
Fernando Baião Viotti *
Não é comum que a mídia brasileira dê ampla repercussão a eventos culturais ocorridos na terrinha” de além-mar, mas, dia 24 de abril foi diferente. Tratava-se do discurso de aceitação do Prêmio Camões, o mais importante do mundo lusófono, concedido a Chico Buarque de Hollanda em 2019 e finalmente entregue em Lisboa, na véspera do 25 de abril, quando Portugal comemora o aniversário da Revolução dos Cravos. Em seu discurso Chico exaltou a efeméride, evocando os versos de sua canção Tanto mar, sem deixar de lembrar também num gesto ousado que a presença de tantas autoridades portuguesas não inibiu seus antepassados cristãos-novos (Diogo Pires e Orovida Fidalgo) que viriam dar com os costados no Nordeste brasileiro ainda no século XVI, fugindo da perseguição implacável dos inquisidores ibéricos.A ampla cobertura do evento, no G1, Uol e similares, destacou quase que exclusivamente por motivos óbvios e mais do que justos a estocada no ex-presidente brasileiro a quem Chico, com admirável ironia, agradeceu” (tendo a sabedoria de não citá-lo nominalmente, no que o sigo aqui), por sua rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões” com a sua assinatura quando a distinção foi concedida. Desincumbido, portanto, de comentar o fato de olho em suas consequências imediatas para o noticiário, gostaria de deslocar a ênfase para outras passagens da fala de Chico, igualmente contundentes e merecedoras de destaque. Essa uma das vantagens em atuar na esfera acadêmica, ao menos em seu sentido original; despreocupado da obrigação de permanecer relevante”, gerar likes, repercutir, enfim, o pesquisador pode se concentrar naquilo que à primeira vista parece lateral e secundário, mas que na maioria das vezes é exatamente onde está a beleza mais humana e irrepetível de um momento singular.
Na melhor tradição da retórica, Chico iniciou o discurso falando de seu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda” (e também crítico literário, Chico, não se esqueça!), que atuou por décadas aqui mesmo na USP, e que no fim dos anos 1960, retirou-se da [então] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar”. Como já fizera em outras ocasiões, Chico recordou a importância do pai e sua influência decisiva lembrada e elaborada ficcionalmente no ótimo romance O irmão alemão para despertar em si o interesse pela literatura e o amor pela língua portuguesa”, amor que acabaria por encontrar de início o seu objeto concreto e meio imediato para se manifestar não através da escrita de livros, mas da composição de canções populares. Citou o amigo de Sérgio, Vinicius de Moraes, elucubrando se para ele a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar nossa língua”, colocando desse modo em relevo um valor tão essencial para a poesia, que é priorizar, em si mesmo, o mero deleite, dando ao gesto mais belo a precedência sobre todo o resto. Falou de João Cabral de Melo Neto, poeta que sabidamente não gostava de música” (e contraparte de outro João, o Gilberto, que não gostava de poesia, ambos eternizados na canção Outro retrato de Caetano Veloso) e seu companheiro na primeira viagem que fez a Portugal durante a encenação de Morte e vida severina, em 1966.
Tenho antepassados negros e indígenas,
cujos nomes meus antepassados brancos
trataram de suprimir da história familiar”
Citou outros escritores também premiados com o Camões, mas sem deixar de dizer mais tarde o quanto lhe agrada ser reconhecido no Brasil principalmente como compositor de canções populares e não como romancista. Há aqui uma moeda de duas faces; é auspicioso ver um compositor-escritor que chegou ao topo no exercício daquela que, entre as duas atividades, é a que desfruta de maior prestígio (a que gera maior capital cultural” para usar uma expressão da moda ), mas elegendo deliberadamente a outra como aquela em que se sente mais à vontade e com a qual mais se identifica. Por outro lado, a escolha reflete um traço muito particular da cultura brasileira, ao reconhecer na nossa canção popular verdadeiro milagre de graça e inventividade, um alcance dentro e fora do País que dificilmente quaisquer outras das nossas formas artísticas possa igualar.
Para quem tem a linguagem como ofício e o mesmo amor pela língua portuguesa” que Chico conta ter herdado de seu pai, deu gosto ver e ouvir tudo isso. No entanto, mesmo assumindo o risco de investir demais numa idiossincrasia, eu diria que o momento mais bonito da fala de Chico Buarque se deu quando o artista, ao relembrar suas origens, saiu-se com uma frase que vale a pena transcrever integralmente:
Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco”.
Ao trazer com tanta contundência para o púlpito de onde falava a mácula do esquecimento, ou pior, da obliteração de um escravismo vergonhoso que marca tantos de nós, Chico colocou o dedo naquela que possivelmente é a nossa maior ferida. A imagem bela e terrível que construiu, se assumindo como símbolo e vetor de um evento histórico decisivo e de enormes consequências, se junta a tantas outras fundamentais que sua canção nos oferece, confirmando o seu lugar na linhagem dos grandes intérpretes do Brasil, da qual o seu pai é um dos maiores expoentes.
A elipse que arremata seu engenho verbal, vendo ali uma potencial explicação quanto ao que somos mas sem de fato explicar o que somos, não oferece alívio ou resposta. Mas enquanto brasileiros letrados, escrevedores e leitores, o que em si já nos torna um grupo muito privilegiado dentro do país mais desigual do planeta, temos, no mínimo, a responsabilidade pessoal e coletiva de prestar atenção, abrir os ouvidos e repetir, em voz alta e indignada para os outros, em voz baixa e envergonhada para nós mesmos, a frase que Chico Buarque entoou durante esse seu encontro festivo com a figura e a língua de Luís de Camões.
* professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH/USP. Artigo publicado no Jornal da USP
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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Gildázio Garcia Vitor
03 de maio, 2023 | 15:20Que artigo maravilhoso! Parabéns! Obrigado!”