
27 de junho, de 2023 | 15:00
Opinião: Mais um amanhecer...
Nena de Castro *
Saiu do calor das cobertas, calçou os chinelos e foi até à janela. Pela fresta da cortina avistou o céu, ainda escuro. O sol apareceria mais tarde, era tempo de frio, toda a natureza parecia andar devagar, em compasso de espera. Aqui e ali, sinais de que o dia chegara e era preciso levar a vida em frente, continuar a caminhada numa busca do destino. O mugido das vacas, o galo cantador, as galinhas conduzindo os pintinhos pelo terreiro em busca de minhocas e farelo, os latidos dos cachorros enormes que guardavam a casa... Lavou o rosto e a água gelada levou consigo o resquício do sono; cabelos penteados, saiu do quarto e foi para cozinha onde rapidamente acendeu o fogo com a acha de lenha e os gravetos já arrumados no velho fogão. A chaleira de ferro com água começou a chiar, ela ajeitou o coador e colocou o pó de café. O cheiro se expandiu pela casa, num prenúncio de coisas boas. A broa de fubá, o queijo feito em casa, a rosca rainha e a manteiga cheirosa no centro da mesa, a vasilha com o leite quente auguraram um dia cheio de trabalho, como sempre. O marido fora buscar a filha mais velha na cidade grande, onde estudava.Além das outras tarefas, ia terminar o preparo do doce de figo, a goluseima predileta da filha Lenora que chegaria à noitinha. Imaginou a moça no trem, ao lado do pai, a mala, o livro nas mãos e o sorriso despreocupado da juventude que lhe trazia covinhas lindas no rosto, os olhos brilhantes...
Sorriu ao lembrar das reclamações de Antelmo e Lorena, os outros filhos, de que mamãe estava preparando tudo para a predileta, só porque ela agora estudava fora”. Como sempre, respondeu que não era verdade, que fazia tudo para todos e quando fossem estudar fora, receberiam o mesmo tratamento. Antes de iniciar o dia, abriu um velho livro de capa escura, e fitou com carinho as pétalas secas de uma rosa vermelha. Ainda sentia o perfume da flor que brilhava ao sol naquela manhã distante de setembro, quando caminhava com o homem por quem se apaixonara. Ele era alto, tez morena, cabelos e olhos castanhos e um sorriso de fazer parar seu coração, que voltava a bater com força, enquanto ela sorvia o ar, embriagada pela beleza da vida, pelo calor que lhe corria pelo corpo, pela sensação de felicidade... Loucuras de beijos ardentes, carinhos sôfregos, ávidos abraços e sussurros.
No entanto a promessa de voltar para buscá-la não foi cumprida, sabe-se lá por que ele desapareceu, disseram que morrera sob o cascalho de uma mina de ouro ou num levante numa expedição de caça na terra dos índios... Sentiu-se só, desamparada e desesperada, os pais zangados. No entanto fora acolhida pela avó que a levara para o sítio no sopé das montanhas, fizera seu parto cuidando de Maria Lenora e lhe ensinara a levantar a cabeça apesar de tudo. Quando José Olinto, colega da escola demonstrou carinho por ela e pela filha, a avó aconselhou-a a se casar com ele e assim foi feito.
Ele fora bom para ela e a criança, vieram os outros dois filhos, a vida lhe ensinara a ter coragem, a viver um dia de cada vez e ela cuidara de tudo, com a coragem das guerreiras ancestrais, mães da terra, com cheiro de mato e flores do campo.
Fechou o livro, suspirando e foi cuidar dos afazeres domésticos, da criação, sabia a que pertencia, sabia que tinha consigo o necessário para continuar, tirava força das águas cantantes do regato, da sombra rendilhada das árvores, do pipilar das pequenas aves, do canto do rouxinol prenunciando a alegria da chegada da primavera. Caminhou resoluta por seu quintal, cantando uma canção de bravos cavaleiros que buscavam gemas preciosas e estrelas, sem esquecer o brilho do olhar das amadas que os esperavam a cada vez que surgia o sol.
Sim, sorriu, um dia de cada vez, enquanto se vive a vida com coragem, a luz dissipando as trevas, a música das coisas existentes tornando tudo mais belo, e o coração batendo no compasso da eterna esperança....
* Escritora e encantadora de histórias
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Tião Aranha
27 de junho, 2023 | 18:01Bom texto. A vida é mesmo sinônimo de luta, mas tb de esperança. Tá faltando mais motivação no ser humano que já não consegue mais mergulhar nas profundezas do silêncio do seu Ser. Risos.”