30 de dezembro, de 2023 | 15:03
Crônica de Ano Novo
William Passos *
Nos períodos difíceis da minha vida, rabiscar frases me traz o mesmo conforto que a reza para quem tem fé: através da linguagem ultrapasso meu caso particular, comungo com toda a humanidade. Toda dor dilacera; mas o que a torna intolerável é que quem a sente tem a impressão de estar separado do resto do mundo; partilhada ao menos ela deixa de ser um exílio. ( ) Em minha opinião, essa é uma das funções essenciais da literatura: superar a solidão que é comum a todos nós e que, no entanto, faz com que nos tornemos estranhos uns aos outros”, escreveu Simone de Beauvoir, uma das mentes mais brilhantes que a Paris do século XX produziu, menos de 150 anos depois de seu país iluminar o Ocidente com os valores civilizatórios da Revolução Francesa.No Brasil do século XXI, menos de 150 anos após a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, Conceição Evaristo, a mente negra mais brilhante da literatura feminina da ex-colônia portuguesa, autora, entre outras obras, de Insubmissas Lágrimas de Mulheres”, publicada em 2011, em certa oportunidade, compartilhou: "o exercício da literatura é a minha maneira de não adoecer. Eu sempre penso nisso e me refiro ao adoecimento emocional. A criação do texto literário é o que me possibilita sair de mim mesma, apresentar minha discordância do mundo e é uma experiência que eu tenho desde bem nova”.
Do outro lado do Atlântico, o escritor moçambicano, filho de portugueses, Mia Couto, definiu: "o escritor não é o que escreve bem, mas aquele sujeito que tem histórias e faz o leitor viajar dentro dele. É, de certa forma, um contrabandista de almas”.
Outro "contrabandista de almas" africano, das almas encantadas pela literatura de língua portuguesa decolonizada, é o angolano José Eduardo Agualusa. Para o autor de "Teoria Geral do Esquecimento" (2012), romance psicológico que conta a história de Ludo, uma portuguesa que decide isolar-se em seu apartamento de cobertura, por medo do que acontecia do lado de fora, em meio a guerra de independência de Angola, "a boa literatura é aquela que levanta questões, que inquieta", que transforma autores e leitores. Escrever, já confessou o autor, por escrito, ajuda-o "a compreender o outro e o mundo".
Outra literatura, a literatura da psicologia acadêmica, confirma que a escrita é a capacidade de dar voz à sentimentos e emoções que precisam de lugar de fala. Não só a escrita: a linguagem, de maneira geral, expressa, de maneira mais sofisticada, através da arte. "A arte é uma magia que liberta a mentira de ser verdadeira", escreveu o filósofo e sociólogo, mas também músico e compositor alemão, Theodor Adorno.
Que você possa viver a vida que quer viver,
e não a vida que os outros querem que você viva”
A verdade é que "a arte existe porque a vida não basta”, como registrou o escritor, poeta e crítico de arte Ferreira Gullar. Atrevo-me a dizer que, na literatura, a realidade, tão insuficiente quanto a vida, sobrevive graças à ficção. Na ficção, todos os nossos desejos são realizáveis; a dor, enfim liberta, perde a capacidade de aniquilação; a permanência do luto ganha sentido. No infinito universo da literatura, a dor do luto pode significar o triunfo eterno da própria vida. E a vida... a vida sempre ganha com a dor de cada perda um novo direito de renovação...
Que em 2024 você possa enlutar o seu medo do outro. Tornar-se o protagonista da própria vida, o escritor da própria história. Que no roteiro original do filme da sua existência as páginas viradas não se tornem "o brilho eterno de uma mente sem lembranças", mas o florescer de uma nova era de "razão e sensibilidade". Que você possa viver a vida que quer viver, e não a vida que os outros querem que você viva. Que no palco do teatro do seu eu você seja a sua própria substância, escrevendo, com as próprias mãos, sem o romantismo enganador dos desejos irrealizáveis, mas também sem a tragédia que destempera o sabor da própria vida, uma nova história na sua Crônica de Ano Novo!
Com abundante gratidão e afeto a você que me acompanha no Diário do Aço desde 2019, um 2024 de muita saúde, paz e sucesso nos desafios cotidianos!
* Colaborador estatístico, jornalístico e literário do Diário do Aço desde 2019.
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Gildázio Garcia Vitor
30 de dezembro, 2023 | 20:03Belíssimo texto! Parabéns! Obrigado! Que em 2024 você continue nos brindando com suas excelentes análises e textos poéticos.
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A cor que deveras sente".”
Javé do Outro Lado do Mundo
30 de dezembro, 2023 | 10:41A gente sempre aprende coisa nova com gente nova. Valeu a caminhada! Um feliz Natal a todos vocês.”