30 de maio, de 2024 | 07:00
Não me chame de ''meu bem''
Ana Rosa Vidigal *
Não chame de meu bem”, disse uma vez para um caixa de restaurante self-service onde almoçava na instituição em que trabalhava. Por que não?”, perguntou ele, com uma cara de surpresa e desconsertada. A impressão era como se a equivocada fosse eu. Porque não me sinto confortável. Você pode me chamar de senhora, ou de professora, como preferir”. Falei sorridente. Nada de embate no tom de voz, nem desafio.
À cara consternada do atendente, somou-se um riso irônico da colega dele que passava por perto na hora. Ele não conhecia, aparentemente, outra forma de chamar o cliente. Será?
O que motivam pessoas chamarem outras de meu bem em situações sociais públicas em que nenhum vínculo interpessoal, além do profissional, exista entre elas? Pessoas que trocam informações em pouco espaço temporal e territorial, um átimo em que a interação em contexto empresarial se faz e se desfaz por uma contingência apenas. E que, ainda assim, se encontram na proximidade social de uma palavra íntima de afeto: linda”, amor”, bem”.
Vi várias vezes atendentes jovens chamarem sua cliente, uma senhora idosa, de meu bem”. Como assim? Qual o grau de permissão o sujeito tem em tratar a senhora dessa forma? Outro dia, ouvi bonequinha”, para essa mesma senhora, que, no caso, é minha mãe de 78 anos; será?
Forçar uma intimidade onde não há não pode ser sinônimo de querer agradar. Chamar um desconhecido de meu bem”, amor” e outros vocativos do gênero soa de maneira, no mínimo, descortês. É uma falsa cultura de aproximação. Uma postura de intimidade que não se sustenta quando contrariada. Quando se pisa no calo. Quando se diz algo com o qual o afetuoso não concorda. O vínculo de intimidade se desfaz imediatamente quando a compra não é realizada, quando o serviço não é contratado. E sabe por quê? Simplesmente porque o vínculo nessa qualidade não existe.
Seja uma prestação de serviço, um atendimento em um espaço público, uma interação necessária com desconhecidos em vias urbanas, um pedido de favor de um ser humano para outro ser humano. Nenhuma justificativa que permita intimidade. De onde vem esse hábito de dirigir-se ao outro de forma tão próxima?
Não, isso não é afeto. Tampouco manifestação de cuidado. É inconveniência mesmo. Ou falta de informação. Falta de gestão. De treinamento de equipes. As estratégias de comunicação empregadas no dia a dia do comércio são desenvolvidas, aprimoradas e recicladas junto aos colaboradores. É preciso dar o tom, afinar para que a empresa não seja lesada em sua credibilidade em nenhuma dessas situações comunicativas: oralmente e por escrito, com inadequações de fala fora do contexto, divergentes do público que é atendido, ou mesmo, na escrita, com palavras fora das regras de ortografia.
Forçar uma intimidade onde não há não pode ser sinônimo de querer agradar”
Lideranças de equipe, façam esta experiência com seus liderados: cumprimentar, denominar e nomear corretamente o interessado, e ver o efeito que isso causa na clientela. Não chame de meu bem” quem chega para comprar, conhecer e ser acolhido por você. Seja respeitoso. Cuidadoso e cortês. Seja constante, firme e coerente. Chame pelo nome. Chame de senhor, de senhora, sem receio de ser formal.
Chame assim, e verá o respeito que inspira na marca de seu empreendimento. Até mesmo certo estranhamento, já que não somos acostumados a ser tratados com esse reconhecimento em vias públicas, não é mesmo? E, observando por esse lado, isso pode ser até um diferencial.
Este é meu lema: vamos de discrição? De distância respeitosa? Talvez, quem sabe, as palavras mudem realidades. Passando do chamamento de meu bem” para sermos considerados o sr ou a sra, quem sabe passamos nos ver, a nós mesmos, com mais respeito, quando tratados efetivamente com cordialidade por outros.
E, dessa forma, nos vendo assim, com mais respeito por nós mesmos, podemos exigir sermos tratados também assim, por quem deveria cuidar coletivamente de nós. Cuidar de nosso patrimônio, em todos os sentidos. Cuidar, na acepção certa. Nas práticas políticas, econômicas, ambientais e sociais, na esfera pública nacional e internacional.
Tratamento respeitoso em todas as esferas é essencial. É o comportamento de que nosso povo brasileiro precisa. Do pessoal ao social. Do individual ao coletivo. Porque, na verdade, a ação em larga escala, e o efeito disso na coletividade, na identidade de uma nação, se faz de múltiplos gestos simples e cotidianos na vida de cada cidadão.
* Professora, psicopedagoga e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e do Socioemocional, suas interfaces nas relações humanas e na construção do vínculo. Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram: @saberescirculares email: [email protected]
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Wilson Albino Pereira
31 de maio, 2024 | 17:46Olá, Professora. Gostei muito do seu texto. Em tempos tão difíceis e desleais, palavras diretas, sinceras e ao mesmo tempo delicadas, mudam os rumos das relações momentâneas e artificiais.
P. S:. Aquela porta aberta lááá no 3° período de Jornalismo no Uni-BH, ainda permanece. Tachi delê!”
Warley Carvalho
30 de maio, 2024 | 17:32Que delicadeza de texto. Obrigado por esse ensinamento. De poder ver na cordialidade o reconhecimento de quem somos e o estabelecimento de um respeito próprio e também compartilhado.”
Gildázio Garcia Vitor
30 de maio, 2024 | 11:16Sr. Tião Aranha, obrigado pelo elogio aos meus comentários! Adoro escrever "baboseiras".
Eu não me digo Professor, eu estou Professor, apenas há 42 anos e três meses. Só em uma Escola da elite de Ipatinga, dia 1°/6/2024 completo 31 anos e três meses de dedicação. Já estou dando aulas para a segunda geração. Engano bem!
Quanto aos pseudônimos, e o "Javé do Fim do Mundo"? Rs.”
Marcia Madeira
30 de maio, 2024 | 11:00Sensacional!!!!
Artigo excelente!!! Feliz por saber que alguém fala a minha língua, compartilha meus pensamentos; tenho verdadeira aversão à intimidade desnecessária e forçada por pessoas desconhecidas, quase sempre informo que prefiro ser chamada pelo meu nome ou simplesmente senhora.”
Gildázio Garcia Vitor
30 de maio, 2024 | 09:50Muito bom! Parabéns! Obrigado pela lição!
Nunca tinha enxergando isso dessa forma, para mim, era simplesmente uma maneira carinhosa de cumprimentar, sem segundas intenções. Como sou idiota e analfabeto!
Vivendo, lendo e aprendendo. Pena que não tenho muito mais tempo.”
Tião Aranha
30 de maio, 2024 | 09:14A falta de respeito é generalizada. O principal problema do brasileiro é mesmo a falta de Disciplina. Nação colonizada por família real dá nisso mesmo. Tais vendo como a classe de professores é tratada neste país? Sem voz e sem vez. "Fudido e mal pago". Pra ser jornalista nem precisa ter Diploma. É só falar mais ou menos a língua e começar a escrever num blog. Tem um aqui que se diz "professor" e que anda só sempre escrevendo baboseiras; tem outros que cada dia tá com um pseudônimo diferente. Pior é quando politico compra um jornal e quer dar uma de moralista. Só publica o que lhe convém. E cai naquele refrão do Olavo de Carvalho: "se quiser falar o que quiser", mude para os Estados Unidos. O mandatário maior já decretou que se publicar qualquer coisinha de política será processado. Rs.”