18 de julho, de 2024 | 07:00

Narrativas para transcender

Ana Rosa Vidigal *

Ganhei um livro de presente de aniversário, de nome “Futuro ancestral”. Com ele, uma mensagem tão especial, que já vale todo o percurso que faço de sua leitura: “Um presente para você, nesse novo ciclo, continuar ressignificando a vida e o mundo a sua volta, a partir do seu olhar ancestral”. Mais adiante, na mensagem, as palavras raízes, sonhos, afeto, resiliência e confiança. E, claro, a referência ao futuro “que desponta”. Que presente, gente!

Já no início da leitura observo uma temática muito cara a mim e que se inicia num trecho assim, na página 31: “De ré, poderíamos dizer que no princípio era a folha. Outras narrativas vão dizer que no princípio era o verbo. Outras ainda vão criar paisagens bem diversas, e isso é maravilhoso”. Sim, é maravilhoso, sim. Narrativas são formas de contar aquilo que nos toca, nos afeta, nos embala, e, por isso mesmo, precisam ser múltiplas porque nós somos assim, diversos, múltiplos, diferentes. E como temos penado para conviver em meio às narrativas variadas.

Desde que o mundo é mundo, e que o ser humano se vê como tal, desde que a palavra intencional é a expressão que nos distingue como espécie, vivemos em controvérsia. E, desde sempre, a diferença em ver, dizer e agir sobre esse mundo vira disputa, embate, polêmica. Talvez esteja aí verdadeiramente a essência de ser humano e nosso propósito como humanidade: encontrar um fluxo para que as narrativas, que são em sua origem plurais, possam navegar fluidas e nos levar à transcendência.

Nos estudos sobre justiça restaurativa, sobre comunicação não violenta e outras abordagens de construção da paz – sejam filosóficas, religiosas, espiritualistas, organizacionais, psicológicas, políticas, legais, científicas etc – além do senso comum, que é também muito importante a considerar – sabemos que o ponto é a negociação de pontos de vista, pela ampliação da forma de ver a si e ver ao outro, perceber o inevitável entrelaçamento das narrativas. E, sobretudo, não estabelecer o poder como maneira de silenciar, calar, destruir ou extinguir, e mesmo definir sua voz como uma única forma de narrar, hegemônica e dominante sobre as outras.

Em tempos de tanta tecnologia avançada para se chegar a informações diversas, de fontes de diferentes lugares e épocas, levanto a pergunta: por que ainda insistimos em permanecer estáticos em nossa posição, ou atuantes, mas em via de mão única, no que se refere às possibilidades de diálogo entre diferentes modos de enxergar e de contar sobre o mundo? Por que não almejamos a permeabilidade e as interfaces possíveis, como as aprendizagens que podem acontecer quando se tocam, em diversas texturas, os fios que tecem o ato e da natureza do narrar de cada um?
“Acredito que a comunicação como encontro, construído por diferentes direções, é a via mais larga para nos caber, e a todos os sentidos”


Quem assistiu ao filme “Narradores de Javé”, uma obra-prima a meu ver sobre a convivência de diversas narrativas de um povo, percebe a dificuldade que enfrentamos em nos organizar coletivamente para acolher narrativas diferentes em convergência para um bem comum. E, desse modo, compreender como a transcendência, em um quesito essencial à vida humana neste planeta, se mostra bem distante de nossas vivências.

Sobretudo se nos atinarmos para o fato de que o próprio planeta tem suas narrativas – quando sofremos com a crise climática ou quando somos agraciados pela água e mesa farta que nos mantêm vivos – fica evidente que há muito mais narrativas a serem consideradas do que ainda somos capazes de identificar.

Para finalizar, vou narrar um episódio que me aconteceu recentemente, entre vários, claro – porque a vida é movente – que nos acometem cotidianamente. Recebo uma palavra de conforto em forma de mensagem no celular, e, junto a ela, a orientação de que preciso ser ‘iluminada’ em minha mente para acolher, do jeito que está sendo dito a mim, o que era oferecido por meio daquela mensagem. Em suma, o que se distanciava – ou seja, o que fosse diferente – daquilo que estava sendo dito, era categorizado, de antemão, como “estranheza, desconforto e indagação”.

Veja, como professora e educadora, essas três últimas noções para aquilo que não nos é familiar são extremamente positivas. A educação quer isto: oferecer a oportunidade de interface com diferentes formas de ver e ser, ou seja, as diversas narrativas que nos circundam, porque disso que a vida se constitui. No entanto, veio, em seguida, a possibilidade de eu ser ‘excluída’ se eu não estivesse concordando com o recebimento daquela narrativa. Minha resposta foi: “se eu puder dialogar, quero permanecer”.

Excluir é o caminho mais certeiro atualmente quando há presença de narrativas disruptivas, atitude que está na contramão da condição de transcendência. No entanto, a princípio, não parece ser o caso. Sigo. E acredito que a comunicação como encontro, construído por diferentes direções, é a via mais larga para nos caber, e a todos os sentidos.

* Professora, psicopedagoga, consultora pedagógica e jornalista. Doutora em Língua Portuguesa pela PUC Minas e Université Grenoble III, França. Atua na formação de professores, gestores, líderes e equipes, ministrando palestras e cursos nos domínios da Educação, da Comunicação e People Skills, as relações humanas e na construção do vínculo.

Publica às quintas-feiras, na Editoria Opinião do Jornal Diário do Aço, temáticas relacionadas ao desenvolvimento humano na vida cotidiana. Instagram:@saberescirculares, email: [email protected] #acomunicação comoencontro.

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