10 de setembro, de 2024 | 11:00
Impenhorabilidade e responsabilidade patrimonial no anteprojeto de reforma do Código Civil
Paulo Eduardo Frederico *
Em sua proposta de alteração na legislação aplicável à responsabilidade patrimonial de devedores pelo inadimplemento, em especial no tocante à regulação dos bens impenhoráveis, o anteprojeto de reforma do Código Civil prevê a inclusão do art. 391-A, com a seguinte redação: Salvo para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar é intangível por ato de excussão do credor. Além do salário-mínimo, a qualquer título recebido, bem como dos valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social, considera-se, também, patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis: a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio; o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família; a sede da pequena empresa familiar, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família.Salário-mínimo - Entre as propostas destacadas, sobressai a regulação a respeito da impenhorabilidade do salário-mínimo. O anteprojeto propõe (art. 391-A, § 1º) a intangibilidade do salário-mínimo recebido a qualquer título contra atos de excussão do credor. Assim, a contrario sensu, os rendimentos superiores a um salário-mínimo não teriam a mesma proteção e, a priori, poderiam ser atingidos por atos de excussão do credor, ou seja, poderiam ser penhorados. Vale destacar que atualmente, conforme disposto no inciso IV e no § 1º do art. 833 do CPC, os diversos tipos de rendimentos do trabalho (vencimentos, salários, aposentadorias etc.) são impenhoráveis por expressa disposição legal até o valor correspondente a 50 salários-mínimos mensais.
Casa de morada - No que diz respeito à proteção ao bem de família, em especial ao imóvel de residência da família, foram propostas grandes alterações. No caso do inciso I do art. 391-A, propõe-se que a casa de morada seja intangível aos atos de excussão do credor apenas se única no patrimônio do devedor.
Essa mudança vem acompanhada da proposta de revogação dos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil, correspondentes ao subtítulo dedicado ao bem de família convencional. Da mesma forma, propõe-se a revogação dos artigos 260 a 265 da Lei nº 6.015/1973 (LRP), dedicados aos procedimentos necessários para a instituição do bem de família convencional.
Não há, no entanto, qualquer referência à Lei nº 8.009/1990, responsável pela proteção conferida ao bem de família legal, que convive com a proteção conferida pelo Código Civil ao bem de família convencional. Assim sendo, a proposta novamente tem o potencial de ser fonte de grave insegurança jurídica em um tema especialmente delicado.
Por fim, vale destacar o disposto no § 3º do art. 391-A como proposto no anteprojeto. Trata-se da inclusão da possibilidade de afastamento da impenhorabilidade mesmo contra a regra geral do inciso I do § 1º (casa de morada única no patrimônio do devedor) em caso de casa de alto padrão.
O anteprojeto traz novamente insegurança jurídica em um tema sensível”
Ao adotar um conceito jurídico indeterminado e sem definição doutrinária ou jurisprudencial (casa de alto padrão), o anteprojeto traz novamente insegurança jurídica em um tema sensível. Além disso, a proposta de que a casa de alto padrão poderia ser excutida até metade de seu valor atenta contra a equidade e a isonomia. Pensemos no seguinte exemplo: em uma situação concreta, uma casa de alto padrão poderia ser avaliada em R$ 10 milhões, a proteção nesse caso seria de R$ 5 milhões, valor que seria usado pelo devedor para a compra de outro imóvel, em princípio impenhorável; em outra situação, um devedor poderia ser proprietário de uma única casa de R$ 5 milhões, igualmente de alto padrão, mas sua proteção seria limitada a R$ 2,5 milhões. Nos exemplos, percebe-se como o devedor com uma casa de maior valor obteve uma proteção superior ao devedor com uma casa de menor valor, desde que ambas englobadas pelo conceito jurídico indeterminado de casa de alto padrão.
O anteprojeto de reforma do Código Civil prevê grandes mudanças na disciplina da responsabilidade patrimonial de devedores, em especial no tocante à intangibilidade de certos bens aos atos de excussão do credor, ou seja, aos bens que a lei considera impenhoráveis.
A constitucionalidade de parte das propostas é discutível, pois, considerada a letra fria da lei nos termos propostos, não haveria em muitos casos preservação do mínimo patrimonial indispensável ao devedor e a sua família, em desacordo com o princípio da dignidade humana e do devido processo legal. Nesse sentido, mostra-se especialmente sensível a restrição da proteção a um salário-mínimo.
Além da discussão quanto à constitucionalidade de parte das propostas, destaca-se a potencial insegurança jurídica em razão da convivência de normas em sentido distinto às quais o projeto não fez qualquer referência. Seriam mantidas as impenhorabilidades previstas no CPC e na Lei nº 8.009/1990?
A inclusão do art. 391-A no Código Civil também é discutível, pois as normas que estabelecem as impenhorabilidades são vistas como limitações políticas à execução forçada, sendo integradas no quadro do devido processo legal. Por essa razão, mostra-se mais adequada sua regulação pela legislação processual.
De modo a evitar riscos à segurança jurídica em um tema especialmente sensível, que não consta da justificação do anteprojeto em seu relatório final, seria mais adequada a supressão das propostas.
* Doutorando da Faculdade de Direito da USP. Texto publicado originalmente no Jornal da USP.
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
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