
03 de agosto, de 2025 | 16:53
Minas: onde a fé molda o barro e a esperança
Leônidas Oliveira *
Há poucos dias, recebi a imagem de uma escultura feita por Jorge da Cruz, artesão da comunidade de CD, em Raposos. Era uma representação de Nossa Senhora da Piedade - a Mãe com o Filho morto nos braços - moldada em barro, com traços simples e fortes. Ao vê-la, fui tomado por um silêncio antigo, como se estivesse diante de algo que não se explica, apenas se sente. Era mais do que uma peça: era oração encarnada em forma.
No dia 31/6 celebramos o dia da dedicação do Santuário de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas Gerais. Situado no ponto mais alto da Região Metropolitana, a 1.746 metros de altitude, o santuário paira sobre o território como vigília e promessa. Desde que foi proclamada padroeira principal do estado pelo Papa João XXIII, em 1960, a Virgem da Piedade tornou-se símbolo de Minas - e Minas, por sua vez, espelha-se nela como terra que acolhe a dor com fé e silêncio.
O que mais me comoveu ao ver a imagem de Jorge foi perceber que a devoção mineira não vive apenas nos altares barrocos ou nas procissões monumentais. Ela vive também no quintal, na oficina, nas mãos calejadas que ainda moldam o barro. Como escreveu Adélia Prado: O que a memória ama, fica eterno.” O artesanato popular é esse gesto de eternizar o que amamos: a fé, os símbolos, os afetos.
A imagem da Piedade modelada por Jorge carrega um traço fundamental da cultura mineira: a capacidade de expressar o sagrado com os recursos da vida comum. O rosto de Maria, inclinado com doçura e dor, os pés descalços, as mãos envoltas no corpo inerte do Filho - tudo ali é expressão viva da compaixão. Não há técnica apurada, mas há verdade. E onde há verdade, há arte.
"O artesanato religioso em Minas é, há séculos, um elo profundo entre fé e comunidade"
Na Serra da Piedade, a pedra sustenta o templo. Nas mãos do artesão, o barro sustenta a imagem. Ambas são formas de elevar o humano ao divino. O santuário é peregrinação; a escultura, permanência. Ambas revelam que, em Minas, a fé não é só crença: é cultura, é linguagem, é forma de coesão.
O artesanato religioso em Minas é, há séculos, um elo profundo entre fé e comunidade. Nas vilas e cidades do estado, ele constrói pertencimento, transmite saberes, preserva vínculos. Ao moldar uma imagem, o artesão não está apenas criando: está compartilhando um código simbólico que une o povo. Como escreveu Guimarães Rosa: As pessoas não morrem, ficam encantadas.” Assim também acontece com as mãos: quando moldam com fé, permanecem encantadas nas formas que deixam.
A escultura de Jorge da Cruz não está em vitrines, mas na continuidade de um gesto ancestral. E hoje, ao celebrarmos a dedicação da padroeira de Minas, recordamos que essa fé moldada com barro, suor e silêncio ainda sustenta nossa gente. Porque, em Minas, o sagrado não está distante: está nas mãos do povo.
E talvez seja isso o mais belo: a imagem de Nossa Senhora da Piedade continua viva - não apenas na pedra da serra, mas no barro que chora e na esperança que se molda todos os dias em tantas comunidades do nosso estado.
* Ph.D. em Teoria da Arte e da Arquitetura Secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
Encontrou um erro, ou quer sugerir uma notícia? Fale com o editor: [email protected]
Gildázio Garcia Vitor
03 de agosto, 2025 | 05:41Texto belíssimo! Poesia em prosa. Lembrei-me de "Romaria", do Drummond.”