21 de novembro, de 2025 | 08:00

''Comanda 3: três caipirinhas sem álcool, bem geladas, por favor!'' - o silêncio do copo

Abner Benevenuto Araújo Paixão *


Há noites em que o bar parece respirar devagar. O som dos copos, o vapor dos pratos, o calor que sobe da cozinha - tudo se mistura num mesmo fôlego cansado. A gravata aperta, o suspensório marca, e o corpo se molda ao abafado dos tons quentes. É nesse cenário, quase teatral, que a rotina se repete: o tilintar da campainha, a comanda anônima, um número sem rosto. E entre tantos pedidos iguais, um surge diferente - “três caipirinhas sem cachaça, bem geladas.”

Por um instante, o profissional hesita. Dentro dele desperta aquele velho guardião da ortodoxia, que acredita que o álcool é a alma líquida de todo copo. Mas basta olhar além do balcão para perceber: o que dá sentido ao ofício não é o destilado, e sim as histórias que se servem junto com o gelo.

À mesa, três pessoas celebram motivos distintos — uma mulher que descobre a gravidez, um amigo que dirige e outro que precisa madrugar. Três vidas entrelaçadas por um mesmo brinde. E ali, entre o som de fritas e gargalhadas, o bartender entende que a celebração não mora na bebida, mas no instante.

A coquetelaria sem álcool é um exercício de sensibilidade e técnica. Exige proporção, olhar e paciência. Substituir a cachaça por água com gás, soda ou suco de laranja não é apenas adaptar: é recriar o sentido do prazer. É entender que o sabor também pode nascer do silêncio — de uma pausa bem dosada, da leveza de quem sabe ouvir o copo antes de servi-lo.

Na caipifruta de morango - Por exemplo - o equilíbrio entre o cítrico e o doce depende mais do gesto do que da receita. A bailarina - aquela colher longa que desenha o movimento - transforma a mistura em harmonia. É ali, no toque sutil do metal sobre o gelo, que o bartender encontra o seu verdadeiro ofício: transformar o comum em experiência.
“Servir um drink sem álcool é, no fundo, um ato de escuta”


Mas entre o calor do serviço e o orgulho da técnica, há sempre espaço para a dúvida. Quem tem razão? O profissional, com sua busca por precisão e coerência? O cliente, com seu desejo por conforto e lembrança? Ou a casa, que tenta traduzir ambos num mesmo copo? Talvez a resposta esteja entre um e outro - num território onde o rei se chama coerência, e o juiz, bom senso. São eles que mantêm o bar em pé, mesmo quando o mundo gira rápido demais.

Porque, no fim das contas, o bar não é um campo de disputa, e sim de encontros. É o lugar onde o sabor encontra a história, e o gesto técnico se confunde com o cuidado humano.

A caipirinha sem álcool, tantas vezes subestimada, é o retrato dessa maturidade. Ela celebra a consciência, o instante e o gesto simples de estar presente. É a ousadia de criar sabor na ausência, de entender que o equilíbrio não está em quanto se coloca no copo, mas em quanto se deixa dele escapar.

Servir um drink sem álcool é, no fundo, um ato de escuta. É reconhecer que o bar fala baixo - e que o silêncio, às vezes, é o ingrediente mais potente de todos.

Porque é nesse espaço invisível entre o som e a pausa que o bartender encontra o seu centro. É ali que mora o verdadeiro ofício: o silêncio e o equilíbrio.

* Bartender da região do Vale do Aço, com experiência em bares e eventos.

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Comentários

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Mariane Tavares

21 de novembro, 2025 | 11:39

“Fico surpresa ao ler um texto tão leve, tão humano, nesta manhã de sexta-feira. Ainda mais escrito por um jovem talentoso, na arte dos copos com os drinques e no manuseio de palavras. Impressionadíssima. Abner, que nos brinde com mais aperitivos como esse de hoje. (detalhe - eu não bebo álcool, pois me faz muito mal).”

Gildázio Garcia Vitor

21 de novembro, 2025 | 11:08

“Pelo belíssimo e poético texto, esse garoto é muito mais que um "Bartender"-no meu tempo, que já faz tempos, era um simples barman-, é um Poeta.
Parabéns!”

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