06 de dezembro, de 2025 | 07:00
Pela preservação das memórias pretas
Pedro Montebello *
O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é uma data essencial para refletir sobre a vasta herança cultural e histórica do povo negro no Brasil. Mas, um único dia no ano é suficiente para honrar a memória de quase quatro séculos de luta, resistência e apagamento? Essa história, não merece ser lembrada e reivindicada todos os dias?
Apesar de avanços importantes, como a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas escolas, ainda há um longo caminho a percorrer. Muitas vezes, personalidades negras fundamentais para a construção do país seguem invisíveis, e suas trajetórias, desconhecidas pela maioria dos brasileiros.
Um exemplo emblemático é André Rebouças. Engenheiro, intelectual e um dos principais arquitetos políticos por trás da Lei Áurea, Rebouças participou ativamente da elaboração da primeira versão do projeto de abolição. Sua atuação foi tão crucial que, sem seu trabalho de articulação e pressão, a assinatura da Princesa Isabel, poderia não ter acontecido no momento e da forma como aconteceu. No entanto, enquanto o nome da princesa é amplamente celebrado, a contribuição estratégica e intelectual de Rebouças, permanece na penumbra.
Isso não é um simples esquecimento. É um sintoma. Rebouças deixou um legado intelectual pioneiro, com ideias avançadas sobre reforma agrária, direito à terra para pessoas libertas e justiça social propostas que iam muito além da simples abolição, e ameaçavam as estruturas de poder fundiário da época. Seu apagamento, não é casual. Ele reflete um processo histórico mais profundo, que o sociólogo Ramón Grosfoguel, em seu artigo A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI”, define como genocídio epistêmico” a destruição sistemática dos saberes, memórias e intelectuais dos povos subjugados.
Num país ainda marcado pelo racismo e pela desigualdade, lembrar, é um ato político”
Esse apagamento é, portanto, estrutural. A invisibilidade de figuras como Rebouças, não se deve à falta de relevância, mas ao fato de que suas ideias desafiavam e ainda desafiam - a ordem colonial do conhecimento. Quando um pensador negro é esquecido, não se perde apenas um nome: perde-se uma visão de mundo, uma crítica social radical, uma possibilidade de entender o Brasil, a partir de outra perspectiva. O fato de a sociedade saber da Princesa Isabel e ignorar Rebouças, não é um detalhe; é o resultado de uma narrativa histórica que centraliza a generosidade de uma elite branca, e apaga a agência, a luta e o intelecto das pessoas negras, que foram, na verdade, as principais agentes de sua própria libertação.
É por isso que iniciativas que buscam resgatar e divulgar essas trajetórias, são tão urgentes. Trabalhos de pesquisa, produção de conteúdos e projetos educacionais focados em intelectuais negros, representam mais do que atividades escolares são atos de resistência e reparação histórica. Eles enfrentam diretamente o epistemicídio, trazendo de volta ao presente, vozes que foram silenciadas. É um combate à lógica descrita por Grosfoguel, que mostra como o conhecimento válido, foi monopolizado por uma visão de mundo específica, branca e ocidental, em detrimento de todos os outros saberes.
No ensino de História e Geografia, essa abordagem é transformadora. Permite que alunos e professores, construam um conhecimento decolonial, que questiona narrativas hegemônicas e valoriza saberes marginalizados. Estudar a trajetória de André Rebouças, por exemplo, não é apenas aprender sobre um abolicionista; é entender os conflitos pela terra no pós-abolição, é analisar o papel das elites negras letradas no Império, é desfazer a ideia de uma abolição doada”, e mostrar uma abolição conquistada” por muitos, inclusive por um engenheiro negro visionário. É uma forma prática de aplicar a lei, e ir além do simbolismo de uma data, criando uma memória viva e permanente.
Rebouças deixou um legado intelectual pioneiro, com ideias avançadas sobre reforma agrária, direito à terra para pessoas libertas e justiça social”
Cada vez que a história de um André Rebouças é contada, um passo é dado contra o esquecimento. É uma afirmação de que o pensamento negro existe, resiste e contribui para a sociedade. Num país ainda marcado pelo racismo e pela desigualdade, lembrar, é um ato político. É dizer que essas memórias importam, e que, a partir delas, podemos construir um futuro mais plural e justo - um futuro onde muitas histórias possam, enfim, ser ouvidas. Um futuro que honre não só a resistência nos quilombos, mas também a inteligência nos gabinetes, a estratégia na imprensa, e a visão de futuro que homens e mulheres negros, como Rebouças, sempre tiveram e pela qual lutaram, mesmo sabendo que seu lugar na história, poderia ser apagado.
* Professor de História formado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia Tratamento da Informação Espacial da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
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