25 de dezembro, de 2025 | 08:00
A mesa de Natal no Brasil: Entre a influência do inverno e a realidade do verão
Abner Benevenuto Araújo Paixão * Carlos Eduardo Lima Salzmann *
A história da ceia de Natal e da celebração do Réveillon sempre dialogou com o clima, com a religiosidade e com a capacidade humana de transformar comida e bebida em rituais de pertencimento. Desde os banquetes das festas de inverno dos povos antigos, a mesa funciona como um ponto de encontro: é onde se agradece o que veio e se tenta prever, quase sempre com esperança, o que virá. Com o passar dos séculos, tradições cristãs, hábitos pagãos e práticas culinárias de diferentes regiões se misturaram, criando repertórios diversos para um mesmo propósito: reunir, alimentar e simbolizar.
No Natal europeu medieval, quando o frio moldava a sobrevivência e a fé moldava o cotidiano, a ceia se firmou como um gesto de comunhão. Carnes assadas, frutas secas, pães fortificados e bebidas quentes aqueciam o corpo e reforçavam os sentidos. O vinho quente - aromatizado, especiado, quase um abraço líquido - fazia parte do ritual tanto quanto o peru ou o porco assado. Havia significado em cada ingrediente: caloria para suportar o inverno, fartura para mostrar resistência, doçura para marcar o renascimento simbólico que o Natal representava.
Quando essas tradições cruzaram o oceano e chegaram às Américas, sobretudo ao Brasil, passaram por uma reorganização profunda e inevitável. Manter pratos de inverno diante de um verão escaldante se tornou quase um exercício de identidade cultural: o país tropical adotou o peru europeu, mas serviu junto abacaxi fresco; abraçou o bacalhau português, mas ladeado por saladas frias; herdou a rabanada, mas reinterpretou com leite condensado.
A mesa funciona como um ponto de encontro: é onde se agradece o que veio e se tenta prever, quase sempre com esperança, o que virá”
A ceia brasileira virou esse mosaico curioso em que heranças coloniais convivem com frutas tropicais e práticas indígenas. A farofa, por exemplo, talvez seja o símbolo mais evidente dessa fusão: simples, popular e versátil, mas capaz de sustentar todo um imaginário afetivo.
A diferença climática também moldou as bebidas. Nos países frios, o Natal é conduzido por líquidos que aquecem: vinhos quentes, ponches, licores densos. No Brasil, o cenário se inverte. O calor empurra tudo para o refrescante: espumantes estouram cedo, gin tônica entra como favorito, coquetéis frutados ganham protagonismo. A coquetelaria tropical transforma o Natal brasileiro em algo luminoso, quase solar. Enquanto lá fora as bebidas envolvem especiarias e vapor, aqui o gelo se torna o centro da mesa e funciona como uma ponte entre convivência e sobrevivência climática.
No Réveillon, a lógica simbólica se intensifica. Os romanos celebravam a virada com rituais de renovação e comida farta, e muitos desses gestos sobreviveram em superstições contemporâneas. Lentilhas para abundância. Uvas para sorte. Nada de aves que ciscam para trás. Cada boca cheia de promessa tenta orientar o futuro. E assim como nos pratos, as bebidas também ganharam interpretações próprias: o espumante virou sinônimo de começar o ano com brilho, enquanto a coquetelaria incorporou rituais modernos, com drinques leves, cítricos e aromáticos, muitas vezes inspirados no mar, já que boa parte das celebrações brasileiras ocorre na praia.
A presença da coquetelaria nas festas contemporâneas não é mero adorno. Ela se tornou parte do discurso gastronômico tão identitária quanto a rabanada da avó ou o tender comprado de última hora. Há quem defenda que um bom coquetel faz o elo entre tradição e atualidade: ele respeita ingredientes, carrega memória e, ao mesmo tempo, abre espaço para criação.
Nos países frios, o bartender aquece com especiarias; nos tropicais, refresca com cítricos e ervas. Ambos, porém, tentam resolver a mesma equação: traduzir o espírito da celebração em um gole que faça sentido no corpo e na cultura.
Comida e bebida são formas de linguagem. São maneiras de contar quem somos, de onde viemos e o que desejamos projetar para o futuro”
Apesar dessas diferenças, permanece uma verdade universal: comida e bebida são formas de linguagem. São maneiras de contar quem somos, de onde viemos e o que desejamos projetar para o futuro. A ceia de Natal e o banquete de Ano Novo, com suas combinações improváveis, suas tradições importadas e suas adaptações afetivas, revelam mais sobre um povo do que qualquer tratado sociológico.
Talvez seja justamente essa mistura - de história, clima, fé e paladar que faz dessas datas um espelho coletivo. Um espelho onde cada país, cada família e cada mesa insiste em ver não apenas aquilo que celebra, mas o que espera.
* Bartender da região do Vale do Aço, com experiência em bares e eventos.
** Chef de cozinha e professor, com trajetória marcada pela fusão entre a gastronomia nipo-italiana e a culinária brasileira.
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
Encontrou um erro, ou quer sugerir uma notícia? Fale com o editor: [email protected]
















