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02 de fevereiro, de 2021 | 18:18

Reality Show de Horrores

João Paulo Xavier *


Esta semana, eu me senti excluído. Em conversa com algumas pessoas, acabei me equivocando nas minhas ideias e, como resultado, elas viraram as costas para mim. Deixaram de falar comigo. Gritaram comigo. Disseram que eu não deveria me assentar junto com elas para almoçar.

Tentei conversar, pedir desculpas, perdão e até implorei com os olhos por uma segunda chance para me redimir, mas não foi suficiente. Fui psicologicamente amarrado em um tronco e chicoteado por elas. Na realidade, isso não aconteceu comigo, mas foi o que vi acontecer no Big Brother nos últimos dias envolvendo o participante Lukas Penteado e os demais confinados.

A sensação de profundo desprezo pelo jovem ilustrou o que nós professores tentamos, há anos combater nas escolas. O que a partir dos anos 2000 passou a ser chamado de Bullying, aqui no Brasil, antes não tinha um nome apropriado e as pessoas que dele eram vítimas, finalmente ao verbalizar, diziam apenas que os colegas de sala ou de emprego estavam “mexendo com elas”. Pense comigo sobre a ação de “mexer com algo”; entendemos que se trata da atitude de alguém me causar algo: “Fulana está mexendo comigo”.

É o que geralmente entendemos, mas não sei quantas vezes pensamos o contrário, na consequência. “Fulana está mexendo comigo”, talvez, poderia ser melhor entendido se invertêssemos da voz ativa para a voz passiva: eu me sinto mexido pela fulana. Eu me sinto afetado por fulana. Eu me sinto vitimado por fulana. O lixo sempre fez parte dos canais de entretenimento no Brasil. Eu cresci nos anos 90,por isso, posso lembrar de tantos programas que, sem dúvidas, mexiam com as pessoas. As pegadinhas que passavam nos programas da Rede TV, nelas pessoas performavam estereótipos de homossexuais que incomodavam as pessoas nas ruas e, assim, pareciam fazer graça para que alguém risse.

Nesses casos, o ator sempre acabava apanhando. O que certamente contribui para uma cultura de homofobia e de agressão aos LGBTs. O Pânico na TV que, dirigido com um viés machista, misógino, gordofóbico, homofóbico, inconveniente e preconceituoso, trazia matérias que zombavam das pessoas em diversas formas. Fazer zombaria, insistentemente, de quem não aceita zombaria é claramente um ato de violência, principalmente, ao nos lembrarmos que violência é, por definição, o desrespeito à vontade alheia e não é nem de longe "liberdade de expressão".

Neste caso, o humor torna-se infeliz e assume o lado bizarro e repugnante da falta de limites que se pode chegar pela audiência. Lamentável, porém, que para boa parte de nós, que teve as personalidades moldadas pela violência, reconhecer um ato de violência demanda um discernimento tão refinado e várias vezes não enxergamos quão brutal são determinadas situações, logo, falhamos em questioná-las.

Outro exemplos são as famosas “vídeos cassetadas” do programa do Faustão, você vê cenas em que pessoas por certo se machucam, mas aquilo é vendido pela mídia como um produto consumível que visa ao entretenimento da família nas noites de domingo. Não levamos coisas sérias a sério há décadas no Brasil. Sarcasmo é, etimologicamente "ferir a carne".

Quer dizer, existe uma intenção consciente de machucar, inferiorizar, ridicularizar e isso não me parece ter graça. Exemplos não me faltam, desde programas infantis aos adultos, Emília – a Boneca de Pano, era sarcástica e debochadamente racista; os quadros do Zorra Total expunham e destituíam da dignidade pessoas negras e periféricas; as novelas de época exaltavam a escravidão, reforçavam a ideologia de inferioridade cognitiva-intelectual e biológica de pessoas negras ao passo que cristalizavam a imagem de brancos salvadores, ideais de beleza universal dentre vários outros aspectos discriminatórios.

A televisão brasileira sempre foi um veículo potente de disseminação de desserviços e desinformações. Apenas recentemente, com a possibilidade de questionarmos e sermos ouvidos em nossas redes sociais digitais e comunidades virtuais é que temos feito nossas pautas e incômodos serem ouvidos. Estamos cercados de "bad influencers". De pessoas que usam as mídias para promover ações nefastas, atitudes ruins, comportamentos inadequados, discursos impróprios, ironias descabidas e total falta de empatia para com o próximo.

O presidente da república é um exemplo certeiro disso. Negou a pandemia, aglomerou, não usou máscaras, recomendou remédios ineficazes para o combate ao vírus, não cumpriu os protocolos indicados pela Organização Mundial da Saúde, não planejou e organizou cronogramas para conter a pandemia, zombou das mortes, ignorou um estado sem luz por dias, fez vista grossa para as queimadas e para o garimpo ilegal e até hoje faz um cabo de guerra com relação a compra e distribuição das vacinas. E, como é comum entre os influencers, tudo que ele faz é devidamente planejado: as palavras ditas, as exposições, os gestos, as roupas, as ações diárias para aparecer. Tudo é bem calculado, nada é ao acaso. Como é comum entre os influencers, as redes sociais são suas armas principais.

Quanto mais aparece, mais continua aparecendo, mais conquista seguidores fiéis. Se alguns seguidores o cancelam, outros tantos não resistem ao seu encantamento. Não paramos de nos surpreender porque, para nós que ainda temos alguma dignidade, é muito estranho alguém ter popularidade justamente por ser alguém ruim. Similarmente, questiono, o ibope de programas tão nocivos e intimamente inimigos daquilo que temos tentado fazer, como educadores, dentro e fora das escolas para combater as discriminações, o bullying, o racismo, o negacionismo e a ignorância.

O que tem acontecido no BBB mostra um lado muito podre da sociedade brasileira. Uma crise de alteridade e de empatia que como uma pandemia de cegueira afeta a todos. Os participantes não percebem que replicam um discurso de ódio que segrega, humilha, inferioriza e, obviamente, mexe com o outro ou deixa o outro mexido, como quiserem. A participante Karol Conka tem atuado como uma Kapitã do mato encarregada da punição incessante e desproporcional quando comparamos os motivos da discórdia que têm levado às agressões psicológicas que vem sendo feitas contra o Lukas.

A história real e a ficcional não são marcadas apenas pelos heróis ou por aqueles injustiçados. Há também os vilões famosos, que arrebatam, seduzem, hipnotizam e contaminam. Aliás, alguns vilões são tão irresistíveis que até quem os abomina acaba contribuindo para que estejam sempre em evidência. No caso do BBB, vejo a Karol Conka dessa forma, na política vejo o presidente como esse "bad influencer" que desgoverna o país. No primeiro caso, ela se sente a justiceira que deve julgar, condenar e punir o participante de quem discorda.

Já no caso do Chefe de Estado, além de contar com seus seguidores idiotizados, frequentadores assíduos do curralzinho, conta com os opositores para divulgar suas sandices. Basta que fale uma asneira qualquer, para que (quase) todo mundo replique, até mesmo vereadores, deputados e senadores ditos de oposição. Parece que sentem regozijo ao compartilhar imagens e palavras da aberração que reside no Planalto. A imprensa por meio das mídias e redes sociais também faz seu papel, repercutindo incansavelmente as imagens das humilhações, gritos e afrontas que ambos, a Kapitã do mato e o Capitão expulso da corporação, fazem.

Eu queria que alguém tivesse uma ideia brilhante para interromper esse círculo vicioso de agressões, de violências e de esquizofrenia coletiva que tem levado as pessoas a seguirem a influência negativa de influenciadores do mal. É uma sombra que nos aterroriza! Dormimos pensando que o dia seguinte poderá ser melhor. Quem sabe tudo foi só uma fantasia, mas ao acordarmos com a constatação de que o pesadelo continua nos sentimentos como telespectadores de um reality show de horrores.

O BBB é uma metáfora excelente para o que vemos hoje em nosso país. Um agressor que subjuga, despreza, ignora, abusa do país que tenta de alguma forma resistir e sobreviver mais um dia, enquanto dois grupos testemunham: os que podem fazer algo e interferir imediatamente, mas que agem coniventemente com tudo e o segundo grupo daqueles que são os telespectadores, que comentam nas redes sociais e acompanham à distância. Em ambos falta empatia, sabedoria, desejo de mudança e de construir um ambiente melhor para todos.

Não há caminho para fora dessa situação pantanosa de gozo e repetição sem a reflexão sobre as consequências dos nossos atos, das nossas escolhas e dos nossos posicionamentos. "Sem uma educação racial e política que seja libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor", emprego aqui as palavras de Paulo Freire. A resposta não está na tentativa de lacração ou na militância sem direcionamento. Não está em apenas compartilhar o que o governo faz, sem de fato, uma organização que se mobilize para a mudança. Sentar e assistir causa apenas esse desalento e tristeza. Uma amiga e professora da Faculdade de Letras da UFMG, Elzimar Goettenauer, com quem comunguei para a escrita deste texto, me acalmou dizendo que o mundo não acabou, não estamos no limbo e nem impotentes diante disso tudo, apenas precisamos agir inteligentemente.

* Doutor em Estudos Linguísticos – Pesquisador e Professor efetivo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e-mail: [email protected]
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