28 de janeiro, de 2022 | 20:00
Um espectro ronda a Europa
Antonio Nahas Junior *
Quem, como eu, foi influenciado pelas ideias de Karl Marx, deve lembrar-se das palavras que abrem um dos seus textos mais famosos, o Manifesto Comunista, publicado em meados do século XIX, as quais dão o título a este artigo. Este espectro voltou. Chama-se Thomas Piketty. Diga-se de passagem: Piketty não é um político, nem mesmo um ativista. É um intelectual potente, que leciona na École d´Economie de Paris e é diretor na École des Hautes Études en Sciences Sociales na França. E não ronda a Europa, propriamente, mas a estuda com argúcia e profundidade.
Formou-se nas escolas mais conservadoras de economia da Europa e dos Estados Unidos. É também escritor de sucesso: seu livro O Capital no Século XXI teve quase três milhões de exemplares vendidos e foi traduzido para mais de 40 línguas.
Este sucesso se explica: seus textos são bem escritos, agradáveis de ler, cheios de informações históricas e contém referências a filmes e romances. No seu livro Capital e Ideologia (1), ele se supera. É um tratado, com mais de mil páginas, com amplas fontes bibliográficas e estatísticas, todas colocadas à disposição do leitor, pela Editora Intrínseca.
Piketty parte de um pressuposto básico: o papel dos cientistas sociais, sobretudo aqueles vinculados a instituições públicas: "Os cientistas sociais têm muita sorte. Eles são pagos pela sociedade para ler livros, explorar novas fontes, sintetizar o que é possível aprender nos arquivos e pesquisas disponíveis e tentar devolver o que aprenderam àqueles que
lhes pagaram (ou seja, o restante da sociedade)".
A sociedade justa é
aquela que permite ao
conjunto de seus membros
o maior acesso possível
aos bens fundamentais”
Considera que toda riqueza existente não é fruto do trabalho isolado, mas um patrimônio de toda a sociedade. A infraestrutura básica; a estrutura de comunicações; a disseminação do conhecimento pela educação; a divisão do trabalho; o acumulo do conhecimento através dos séculos é que permite a geração contínua de riqueza.
Dá vários exemplos, entre eles o Google: Empresas como o Google, que se lançam à digitalização/apropriação de bibliotecas e coleções públicas e podem vir a faturar acessando recursos já antes públicos e gratuitos e ter ganhos consideráveis, podem faturar muito, mas não aumentam o estoque de capital existente na sociedade. A capitalização das empresas de tecnologia inclui patentes e habilidades que não teriam surgido sem os conhecimentos e as pesquisas fundamentais financiadas por fundos públicos e acumulados pela humanidade há dezenas de anos".
Centra seu livro na análise das práticas, ideias, mitos, que deram justificativa e legitimidade à desigualdade nas diversas sociedades humanas. Num trabalho monumental, dedica-se a estudar a desigualdade ao longo dos séculos e perpassa praticamente todas as sociedades existentes no mundo: Índia: China; países africanos; Estados Unidos; Brasil (um dos campeões da desigualdade).
Sua conclusão: as sociedades devem ser igualitárias. Todos os indivíduos devem ter as mesmas chances e direitos. "O que é uma sociedade justa? Proponho a seguinte definição imperfeita: a sociedade justa é aquela que permite ao conjunto de seus membros o maior acesso possível aos bens fundamentais. Entre esses bens fundamentais figuram sobretudo a educação, a saúde, e a participação de todos nas diferentes formas da vida social, cultural, econômica, civil e política".
Com estes pressupostos, Piketty se preocupa com o aumento da desigualdade no capitalismo do século XXI, estimulado sobretudo pela queda das sociedades comunistas europeias, e a desagregação política da social democracia europeia, ambas ocorridas no fim do século XX. Trata-se, segundo ele, de uma das evoluções estruturais mais preocupantes com que o mundo se vê confrontado nesta segunda década do século XXI.
Após uma fase de redistributivismo e relativa igualdade, marcada pela predominância dos partidos social democratas, sobretudo na Europa, entre os anos 1950 e 80, a partir dos nos 90, o 1% mais rico da população captou assombrosos 27% do crescimento mundial. A desigualdade extrema voltou com toda a força.
Entre os bens fundamentais
figuram sobretudo a educação, a
saúde, e a participação de
todos nas diferentes formas
da vida social, cultural,
econômica, civil e política"
As consequências políticas deste evento são sentidas a cada dia no mundo político, com a busca de soluções antidemocráticas, nacionalistas, que emergem diversos países, ameaçando destruir ou tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento social e político conquistado pela humanidade ao longo dos séculos.
Piketty considera o socialismo participativo um caminho provável, para que a humanidade não regrida. É um crítico ferrenho da centralização e falta de liberdade das extintas sociedades comunistas. Defende com ênfase a democracia participativa, para a qual aponta diversas sugestões de melhoria e aperfeiçoamento.
Considera também que a luta contra a desigualdade e pela preservação do planeta é uma tarefa de todos. "A história da desigualdade não pode ser reduzida ao eterno confronto entre os opressores do povo e os seus orgulhosos defensores. Ao contrário da luta de classes, a luta das ideologias se fundamenta no compartilhamento de conhecimento e experiências, no respeito ao outro, na deliberação e na democracia."
Seu modelo de socialismo participativo baseia-se na substituição da propriedade privada pela propriedade social, via compartilhamento do direito de voto nas empresas. Piketty refere-se também à restrição ao direito de herança; e a taxação progressiva da renda, procurando equilibrar de forma contínua e permanente a distribuição de riqueza na sociedade.
Todos os indivíduos teriam oportunidades iguais para progredir e realizar seus sonhos. A propriedade privada continuaria a existir, em particular as pequenas e médias empresas. Ou seja: não haveria a figura de um Estado tentacular e opressor, que propiciaria o surgimento dos ditadores.
Seu livro aponta um rumo: a busca de uma democracia participativa e igualitária. E deixa claro que só a prática e a experiência histórica poderão clarear e construir este caminho. Um grande livro. Um grande escritor. Obrigado, Piketty por sua contribuição à humanidade.
* Economista, empresário, especializado em Administração Financeira. [email protected]
Obs: Artigos assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do jornal Diário do Aço
Encontrou um erro, ou quer sugerir uma notícia? Fale com o editor: [email protected]
Tião Aranha
29 de janeiro, 2022 | 17:42A saída seria parar de supervalorizar o capital externo focado exclusivamente na obtenção do lucro exacerbado. Risos.”
Gildázio Garcia Vítor
29 de janeiro, 2022 | 12:05Muito bom! Excelentes indicações: autor e livros. Obrigado!”